A SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES BANCÁRIAS
Vigora entre nós, desde 17 de setembro de 2017, a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Para além de diversas obrigações de reporte e comunicação que os Legisladores Europeu e Nacional estabeleceram, e que esta Lei corporiza — indo ao encontro de crescentes necessidades de combate a formas mais evoluídas de criminalidade organizada e tecnológica e a uma malha de procedimentos que se aproveita da complexidade da globalização — a Lei em questão estabelece específicas obrigações sobre o setor bancário — que necessariamente vêm contribuindo para a corrosão da relação de confiança que tradicionalmente se estabelecia entre os Bancos e os seus Clientes e para tornar o processo de abertura e manutenção de contas bancárias um exercício de paciência kafkiana.
De entre essas obrigações, salienta-se o dever de comunicação imediata ao DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) e à UIF (Unidade de Informação Financeira) de quaisquer ativos que saibam, suspeitem ou tenham sazões suficientes para suspeitar (distinção redundante de dúbio e rebuscado significado) provenham de atividades criminosas (quaisquer umas, seja qual for a sua moldura) ou estejam relacionadas com o financiamento do terrorismo, obrigação que recai sobre operações propostas e tentadas.
E desse dever decorre um outro, o designado “Dever de Abstenção”, segundo a qual as entidades a ele obrigadas (usualmente e por natureza do tipo de operações mais relevantes, Instituições de Crédito) se devem abster de executar operações que saibam ou que suspeitem (neste caso já sem a redundância) poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de (quaisquer) atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo — estando essas entidades obrigadas, novamente e nos mesmos termos, a comunicar ao DCIAP e à UIF que essa abstenção ocorreu.
Inicia-se com esta comunicação um processo opaco, mediante o qual o DCIAP pode, nos 4 dias úteis seguintes à remessa da informação, determinar a suspensão da execução das operações reportadas, por notificação à Instituição denunciante, decisão essa que deve, para se manter, ser confirmada pelo Juiz de Instrução Criminal competente no prazo de dois dias úteis — já no âmbito de um processo de inquérito criminal.
O curto prazo assim estabelecido e a fina malha estabelecida para a rede das Instituições de Crédito — que frequentemente e, à cautela, interpretam a suspeita que deve despoletar a sua conduta como a mera anormalidade, ou extravagância do pedido do Cliente, gerando muitas comunicações que de facto não cabem na previsão legal — faz adivinhar uma análise muito superficial por parte quer do DCIAP quer do Juiz de Instrução, que tenderão a confiar no critério de suspeita gerado pela Instituição denunciante.
Considerando que se está, por natureza, no âmbito da investigação de criminalidade de excecional complexidade e frequentemente envolvendo vários Países, torna-se de imediato normal que o Ministério Público aproveite da prerrogativa que esta Lei lhe confere de não notificar os titulares das contas afetadas, da decisão de suspensão, pelo período de 30 dias.
A praxis judicial a que se tem assistido, de facto, é que, pela conjugação das regras do momento de constituição de arguido e de uma entendida discricionariedade do Ministério Público quanto ao momento da primeira inquirição do suspeito (que pela lógica será o titular da conta objeto da suspensão), esta comunicação pode nunca chegar a ocorrer e, quando ocorre, usualmente pelas mãos da Instituição Denunciante, não apresenta qualquer fundamentação — mantendo-se normalmente o processo em segredo de Justiça por longos meses, vedando assim sequer a compreensão por parte do visado.
Importa notar que, a Diretiva 2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime, estabelece a obrigação de a legislação de transposição tomar as medidas necessárias para assegurar que as pessoas afetadas pelas medidas previstas na presente diretiva tenham acesso a vias de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, para defender os seus direitos e para assegurar que a decisão de congelamento seja comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. Essa comunicação inclui, pelo menos em forma resumida, o fundamento ou os fundamentos de tal decisão, mas reserva a possibilidade de, quando tal for necessário para não prejudicar uma investigação criminal, as autoridades competente podem adiar a comunicação da decisão de congelamento à pessoa em causa.
Não se nega que a investigação de factos que meramente se especulam, usualmente a partir apenas do montante da quantia movimentada, ou da insuficiente demonstração documental da razão da operação, se deve revestir de uma enormíssima dificuldade. Repare-se que o Ministério Público se vê colocado na circunstância de investigar a prática de um eventual crime, que não sabe qual possa ser, não se sabe praticado por quem, e onde no Mundo — usualmente saberá apenas de onde originaram os fundos a movimentar ou para onde se destinariam. E isto apenas porque um qualquer funcionário de um qualquer Banco entendeu ter motivos validos para eventualmente poder suspeitar de que o montante movimentado poderia originar de uma atividade criminosa.
Porém, a construção que a Lei assim estabelece, na aplicação que lhe é dada, viola em nossa opinião não só aquela regra estabelecida na Diretiva 2014/42/EU que obriga a medidas de recurso efetivas e a um julgamento equitativo, que o direito constitucional também estabelece, como também defende a propriedade privada. Efetivamente, assiste-se de forma recorrente a inquéritos iniciados com suspensões de operações bancárias em que o visado de nada mais é informado do que da própria ocorrência da suspensão e, com sorte, do número de processo de inquérito criminal, que normalmente não poderá consultar, primeiro porque raramente será arguido (e portanto não gozará de direitos processuais) e depois porque o processo permanecerá em Segredo de Justiça, pelo menos até ao fim dos prazos máximos de inquérito, que facilmente são estendidos até aos 18 meses.
Simultaneamente, por se tratar de uma medida de prevenção que não se inclui no catálogo do Código de Processo Penal, esta medida de suspensão de execução de operações tende a ser vista como não justificando a concessão de direitos ao visado, sendo exemplificativa a posição do Tribunal da Relação de Lisboa, que em 6 de outubro de 2020, referia que:
“-Considerando a fase processual em que a medida é decretada, de recolha de prova, anterior à constituição de arguido e com uma exigência de indiciação inferior, não se reconhece a alegada violação do princípio da presunção de inocência (art.32, nº2, CRP), pois não existe sequer arguido constituído, em relação ao qual exista qualquer juízo de culpabilidade e as restrições aos direitos do visado estão justificadas pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
“- O valor da Justiça, o combate e a perseguição aos movimentos financeiros de proveniência ilícita, designadamente transferências de dinheiro, impõem-se e sobrepõem-se aos eventuais prejuízos causados pela suspensão da movimentação de contas bancárias.
“- Quando remete para a decisão do MP de ordenar a suspensão, com vista a confirmá-la, o juiz a quo não está, propriamente, a aderir às teses de uma parte no processo, uma vez que o Ministério Público, no processo penal, não é titular de interesses contrapostos aos do arguido, cumprindo-lhe fazer valer o ius puniendi do Estado, havendo que agir sempre com imparcialidade e objectividade, colaborando ‘com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito’”
Esta complacência pode mesmo ser levada ao ponto — como já vimos ocorrer — de a decisão de suspensão, limitada como está pelo prazo máximo de inquérito, ser substituída pela própria apreensão das contas — sem prévia constituição de arguido do titular da conta e sem que este seja ou tenha sido notificado da decisão judicial que o decrete.
Não haja ilusões: pelos montantes frequentemente envolvidos, a aplicação deste procedimento, com a latitude que é permitida ao Ministério Público, consubstancia um verdadeiro confisco pelo Estado, sem direito a contraditório e que pode conduzir à “inutilização”, pela via de insolvência, da entidade visada (muitas vezes uma sociedade comercial).
Em nosso entender, a opacidade do procedimento descrito, conjugado com uma errada — na nossa opinião — aplicação de discricionariedade pelo Ministério Público quanto ao momento de constituição do visado arguido, consubstancia uma violação clara do direito a um julgamento equitativo e em tempo útil, estabelecido pelo art.º 32.º da Constituição e à salvaguarda prevista na Diretiva 2014/42/EU.